Ser uma mulher imigrante ou migrante é um grande desafio. Muitas de nós tivemos que deixar nossos
Territórios de origem em busca de segurança, diante de ameaças de morte, para melhorar nossa qualidade de vida, buscando realizar um sonho ou por circunstâncias da vida.
Entretanto, chegar a um país que não possui seus costumes, sua cultura e/ou seu idioma significa que estamos constantemente lutando em várias frentes. Pela nossa experiencia, sendo mulheres migrantes do Sul Global, daqueles territórios que fazem parte da nossa Abya Yala, fomos afetadas pelo sexismo, classicismo, capacitismo e racismo estrutural. Se já experimentamos essas opressões em nossos territórios de origem, em um contexto transnacional e migratório, essas opressões se tornam mais fortes porque geralmente as enfrentamos sozinhas ou isoladamente. Adicionado a esses desafios que enfrentamos é ser uma mulher afrodescendente. Não é fácil encontrar lugares seguros e livres de estereótipos, onde possamos dialogar com outras pessoas sobre o que estamos enfrentando e vivendo seja em nossos corpos, em nossa pele. Espaços como o “Mulheres em Transformação”(Change Maker Program), é um programa desenvolvido pela Latin American Women´s Aid, LAWA, em Londres, Reino Unido e tem como um de seus objetivos acompanhar os processos de mulheres migrantes de origem latino-americana e caribenha para lutar contra toda discriminação, refletido sobre o impacto do racismo em nossas vidas. À partir dessa experiência coletiva de quase três anos caminhando juntas, algumas de nossas irmãs afrodescendentes compartilharam seu testemunho como um ato de rebeldia e amor próprio em um sentido radical.
Hoje, 25 de julho, Dia Internacional das Mulheres Negras, Dia Internacional das Mulheres Negras no Brasil, nossas irmãs se perguntam: O que é ser uma mulher de ascendência africana, migrante / emigrante e vivendo na diáspora?
Essa foi uma das perguntas que algumas companheiras que participam do programa Mulheres em Transformação responderam e compartilharam conosco hoje, 25 de julho.
“Inicialmente, não tinha orgulho de ser de ascendência africana. Nasci numa época em que sentia muita discriminação pelos meus cabelos, pela cor da minha pele (apesar de ser biracial) e pela minha origem social. A essa discriminação devido à minha cor de pele, foram acrescentadas discriminação econômica e social. Lembro que uma vez um companheiro me convidou para a escola de Belas Artes, era para ser um espaço público, mas vi que a maioria das pessoas que lá frequentava eram estrangeiros e de escolas particulares. Eu então pensei que a arte era muito elitista porque não havia pessoas como eu. Com essa experiência, percebi a diferença nas aulas. Foi um grande choque, porque eu queria ser como eles e tive dificuldade em aceitar o que era. Naquela época, eu era muito jovem e, como a maioria das pessoas afrodescendentes da época, não tinha com quem conversar ou a quem explicar o que estava acontecendo ao meu redor e aceitar quem eu sou com amor. Mas, pouco a pouco, ao longo de minhas experiências, tomei consciência do meu caminho e encontrei pessoas que me ajudaram a reconhecer minha identidade. Quando migrei, tive a oportunidade de me reconhecer como negra, de me sentir ótima por ser negra, de me sentir ótima por ter cabelo crespo. Vendo outras mulheres que se sentem bem por serem do jeito que são, eu me perguntava: por que não se sentir bem comigo também? Então, eu estou sendo muito legal comigo mesma.
Às vezes penso que gostaria de ter chegado em Londres mais cedo porque aprendi a me amar quando ao chegar aqui. Aos 50 anos conheci muitas culturas e mulheres de diferentes culturas. E então, pensei seriamente que todos somos descendentes de africanos. Quando penso o que quero deixar como legado, ou como quero que outras pessoas se lembrem de mim, acho que meu melhor legado é ser eu mesma. Não quero ser útil só a minha filha e minha sobrinha, porque também estou me entregando à minha comunidade.”
–Emma Brugés Ariza, Barranquilla, Colombia-Islington, Londres, Reino Unido.
“No início, eu não tinha consciência do que era ser afrodescendente. Minha mãe é branca, enquanto meu pai era preto. Meu pai teve que lutar uma batalha para se casar com minha mãe porque sua família não o aceitava. Seus filhos saíram assim, mas eu não via a cor da minha pele como um problema. Toda a minha vida vivemos em El Bagre, onde a mistura étnica e racial era normal. Eu era igual a todos lá. Percebi diferença quando visitamos a família da minha mãe; Percebi que tratavam melhor os outros primos e parentes ” mais brancos”, mas isso não me importava. Depois fui estudar numa escola de freiras e havia apenas duas mulheres afrodescendentes na classe. Será que nunca me importei se as pessoas gostavam de mim ou não? Por que ignorei isso? Eu acho que minha conexão ancestral e cultural com minha herança negra é que desde criança eu senti o “instinto” de me conectar com a dança e a cumbia, em particular. No entanto, foi quando cheguei a Londres em exílio político que explorei minhas raízes negras. É inesquecível para mim que um dia fui visitar a cidade de meu pai em Guapi, Cauca, uma área com uma presença negra muito forte na Colômbia. Lá me identifiquei e me apaixonei pela comida, pelos cheiros, pelos sabores, pela música. Foi como redescobrir minha herança. Essa experiência me fez ser consciente de mim mesma. Sofri discriminação ao longo da minha vida. Creio que o racismo seja muito forte na Colômbia, especialmente em Medellín, na zona cafeeira e na capital. É triste ver, por exemplo, que não há representação na mídia, nas revistas de gente como eu. Dificilmente essa realidade irá mudar. A elite formada na Colômbia, os mestiços que fizeram a independência, queria ter poder político e econômico baseado na exploração de povos indígenas e negros. Para sobreviver a essa exploração, as comunidades negras foram para os palenques (quilombola) lugares que ainda existem. No entanto, esse poder mestiço continua a controlar a riqueza nacional.
Quero transmitir através da dança e da cultura minha alegria de ser afrodescendente. Quero que as pessoas no Reino Unido saibam através da arte como nossos ancestrais se ajudaram, resistiram e através do corpo mantiveram sua alegria e não se deixaram matar pelos colonizadores”.
-Marta Hinestroza, Medellín, Colombia- Greenwich, Londres, Reino Unido.
“Eu tinha 8 anos quando percebi que a cor da minha pele carrega estereótipos e preconceitos que ficam evidentes no tratamento que recebo das pessoas. Eu estava no segundo ano quando percebi como meus professores tratavam as crianças brancas filhas de médicos de uma maneira especial, com mais condescendência e colocando grandes expectativas em seus futuros. Não entendia por que eu não recebia aquele tratamento… Naquela época, eu não sabia como nomear o que vivia e sentia, mas agora sei que nada mais são do que ações racistas e classistas, de uma herança colonial que continua a operar hoje em Honduras e em toda a América Latina. Além disso, na adolescência, entendi sobre hipersexualização e o machismo estrutural em que viviam as mulheres negras e, me recusei a aceitar essa realidade e fiz dela minha causa de luta.
Fazer parte do Change Maker durante minha estadia em Londres ajudou-me a aprofundar no Feminismo comunitário e decolonial. Isso me ajudou a canalizar e transformar minhas preocupações em movimentos sociais para justificar essas lutas. Eu aprendi e tenho praticado a Sororidade com outras mulheres, que, como eu, migraram e chegamos a ser acolhidas em sociedades no “norte global”, onde o racismo e o machismo institucional constantemente nos lembram de onde viemos e onde eles querem nos colocar. Agora sou mãe e com essa consciência social, estou educando minha filha com valores e ferramentas feministas e antirracistas, para que ela se fortaleça, chame as coisas pelo nome e saiba defender seus direitos.
Kenia Ramos, Honduras-Londres, Reino Unido-Madrid, Espanha.
Não é normal nos olharmos no espelho e ouvir aquelas vozes que sussurram nos lembrando que devemos obedecer a certos estereótipos de beleza; não é normal ouvir vozes amigáveis nos dizendo “… eu gosto de você por ser inteligente, mas sua cor de pele diz outra coisa …”, ou aqueles que dizem “… andar com mestiços te fazem um pouco afrodescendente …”, ou aquele típico comentário de “… porque sua mãe é mestiça e você é negro…” e assim por diante. São muitos cenários que representam discriminação na vida cotidiana.
O desejo de mudar a história e construir um ambiente mais agradável começou quando resolvi encarar cada crítica com serenidade, construindo paredes de força, orgulho, segurança e amor próprio, deixando de lado o negativo e me cercando de pessoas que trazem uma aura positiva para minha vida. O fato de migrar para Londres não muda a história. O racismo está em todos os cantos do mundo, apenas muda de nacionalidade e espaço, mas se observa a mesma discriminação. Você ouve comentários fora do contexto de outros migrantes, como: “… por que você é negra se Shakira é branca…” “… todos os latinos são das montanhas …” “… na Colômbia, existem pessoas iguais a chimpanzés como você …”, “… o que você está fazendo aqui se não sabe inglês …”, “… por que você tem lábios tão grandes …”, “… você tem as mesmas habilidades que seus colegas, mas prefiro que você não interaja com os clientes e entre para limpar …”, ” … você é um traficante de drogas … “,” … por que você tem um cabelo tão bonito se você é preto … ” Isto sim é verdade! Não só aqui em Londres, mas, em meu país natal Colômbia, também já passei por infinitos comentários e discriminação. Não só pela questão da cor, mas, também por discriminação de classe social. Mas, são cenários de pouca importância ou relevância para mim. Deixe-me dizer-lhe, querido amigo Afrodescendente-Migrante, que a verdadeira jornada começa quando entendemos que somos um diamante bruto, que podemos ser transformados ou moldados em peças valiosas. Temos argumentos e fundamentos suficientes para mudar nossa realidade em qualquer lugar do mundo. Pegue cada um desses comentários e costure-os com integridade, orgulho e tenacidade, porque isso vai nos mostrar quem realmente somos. Isso vai despertar admiração e respeito, vai fazer a diferença entre um grupo de poucos ou talvez em amplos setores; sempre deixe um legado positivo porque ser “NEGRO”, como nos chamam, não afetará nada se o seu coração e as suas ações estiverem ligadas ao empoderamento.
Aprendi a me amar mais do que de costume, amo meus olhos grandes, meu nariz achatado, meus lábios vermelhos, meu cabelo cacheado; porque sem eles eu não poderia expressar minha felicidade, minha euforia, loucura, prudência, poder, afronta e o que mais gosto, a “filosofia do importaculismo”.
Viver em Londres é um desafio, ele se concentra em você e oferece um panorama diferente, onde somente você decide se se acorrenta ou se quer libertar-se de toda rejeição. “
Diana Mina, Cali-Colombia, Londres, Reino Unido.
Foto do cabeçalho: Arquivo da performance coletiva “O poder de nossos ancestrais” realizada em 14 de março de 2020 na Tate Exchange como parte do Programa de “Mulheres Tecendo a Transformação”. Nesta performance, participaram nossas irmãs brasileiras que fazem parte do programa em português. Esta foto é da performance que a artista visual afro-brasileira Nina Franco realizou com outras mulheres da comunidade afro-brasileira em Londres, homenageando o cabelo afro e os saberes ancestrais que foram transmitidos de geração em geração.
25 de Julho
Dia Internacional da Mulher Afro latino-americana, afro-caribenha e Diáspora
O que é ser mulher afrodescendente e migrante no Reino Unido?
Mulheres em Transformação – Change Maker Program
De hoje em diante não quero alisar meu cabelo. E vou rir daqueles – que, para evitar – segundo eles – qualquer infortúnio, chamavam pessoas negras de pessoas de cor – E de que cor, Preto! E que lindo soa, PRETO! E que ritmo tem!
Vitoria Santa Cruz – Poeta afro-peruana
25 de Julho
Dia Internacional da Mulher Afro latino-americana, afro-caribenha e Diáspora
Mulheres em Transformação – Change Maker Program