Corpo-território é um termo-chave de interpretação que feministas comunitárias da América Latina e do Caribe utilizam para falar da interconexão entre os corpos humanos, a Terra e todos os seres vivos. O bem-estar ou saúde holística implica cuidado e apoio mútuo onde a natureza, a terra, e todos os seres vivos são considerados parte de um todo.
No entanto, foi triste saber que durante a pandemia de Covid-19 as condições de vida em nossos países latino-americanos pioraram em alguns aspectos. Doenças consideradas erradicadas foram registradas na Venezuela. Surgiram surtos de malária, tuberculose, zika, e chicungunha, enquanto que os casos de HIV aumentaram por falta de cuidados médicos e remédios. Casos de dengue, sarampo e câncer aumentaram no México, enquanto que os casos de gripe sazonal se agravaram no Chile. Casos de cólera e desnutrição afetaram comunidades indígenas e crianças na Colômbia, onde vários casos de mortes por desnutrição grave ocorreram ao longo de 2020.
Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a Covid-19 causou um retrocesso de 30 anos nos índices de pobreza na maioria dos países da América Latina e do Caribe. A mesma organização indicou que em 2020 o número de mulheres sem renda própria aumentou e os níveis de pobreza permaneceram altos em áreas rurais e entre povos indígenas e crianças. Assim sendo, a feminização da pobreza continua sendo um dos principais desafios a serem vencidos.
Não é por acaso que nas periferias das cidades latino-americanas e nas áreas rurais, a pobreza econômica, a desertificação dos territórios, e a despejo de água e de solo contaminado é sinal do fracasso das políticas neoliberais e mais uma dívida histórica com as mulheres e a natureza. Essas áreas, habitadas por comunidades indígenas e migrantes precarizadas, apresentam doenças e problemas sociais que poderiam ser evitados se houvesse cobertura universal e gratuita de saúde e educação laica e pública, assim como alternativas de acesso a um espaço limpo, com água potável e alimentação saudável para seus habitantes. É aí onde as mulheres e as dissidências sexo-genéricas podem desempenhar um papel fundamental como Agentes de Mudança.
As mulheres continuam sendo as mais afetadas, mas também as que mais resistem, se organizam e viabilizam a esperança, como vimos durante a pandemia. Nas periferias da Argentina e do Chile, por exemplo, grupos comunitários se organizaram para que não faltassem alimentos saudáveis em alguns bairros. Abrigos para mulheres trans transformaram seus espaços em lugares de ajuda mútua, e outros grupos ofereceram apoio mútuo lançando campanhas de arrecadação de fundos para os mais necessitados.
Essas experiências comunitárias de apoio mútuo e solidariedade em tempos de crise são consideradas formas de “acorpamento” (acuerpamiento em espanhol) que, para a feminista comunitária e curandeira ancestral guatemalteca, Lorena Cabnal, se refere a “ação pessoal e coletiva de nossos corpos indignados ante as injustiças que vivem outros corpos”. Para ela, redes de resistência entre mulheres e suas comunidades constroem um espaço aberto à troca de energia política e sabedoria espiritual e ancestral, bem como desenvolvem ferramentas de autocuidado e ajuda mútua para resistir e agir contra as múltiplas opressões vividas e sentidas. Desta forma, se colocam no centro da vida os corpos-territórios; ou seja, a visão holística de ser parte de um todo.
“Acorpar-se” é uma forma de resistência, organização e reivindicação para que nossos corpos-territórios da América e do Caribe se curem. Doenças, desapropriação de terras e exclusão social deveriam ser erradicadas. O apoio internacional não é suficiente se não houver vontade política local para mudar as formas de governo.
Neste Dia Mundial da Saúde 2022, como latino-americanas no Reino Unido, queremos que as políticas de privatização da saúde, dos recursos naturais e da educação sejam descartadas. Desejamos saúde e queremos justiça social, racial e ambiental para os corpos-territórios indígenas, afrodescendentes e periféricos que carregam nos ombros a esperança de um mundo melhor onde tudo seja para todos.
Referências:
- https:://www.eluniversal.com.mx/mundo/las-otras-epidemias-de-america-latina https://www.lafm.com.co/colombia/mas-de-100-ninos-han-muerto-por-desnutricion-en-colombia-durante-el-2021
- “Sube la extrema pobreza en América Latina a niveles no vistos en casi 30 años”, en: https://news.un.org/es/story/2022/01/1503172
Ilustração: @moarabrasil